Delimitação do tema

Cresce o interesse acadêmico pelo tema da participação política, em especial, pela busca de sofisticação teórica e metodológica diante da ampliação de diferentes modalidades de participação, com destaque para os protestos e para a participação institucional materializada em programas de orçamento participativo, conselhos gestores, comitês, conferências e audiências públicas, entre outros. Tais modalidades vêm se fazendo presentes em países como o Brasil e Portugal, desafiando estudos de base comparativa sobre o fenômeno da participação política nas sociedades contemporâneas. Assim, o interesse científico da cooperação proposta visa dialogar com a literatura, mobilizando os principais fatores que são apontados como condicionantes da participação, em suas diferentes modalidades. Em Portugal (desde 2011) e no Brasil (desde 2013) os protestos têm ganhado importância com novas ondas de fortes manifestações (Baumgarten, 2013; Estanque, 2014). Por outro lado, se o Brasil foi pioneiro na criação de experiências institucionais de participação, como o conhecido modelo do orçamento participativo, contando atualmente com aproximadamente 350 experiências em curso, este modelo participativo vêm ganhando espaço em Portugal, que conta com cerca de 70OPs no país, em um processo de crescente expansão (Dias e Allegretti, 2009). De fato, estamos tratando de um tipo de participação política de base institucional que não encontra guarida nas tipologias tradicionais de participação política.

A literatura que trata da participação política, em geral, está preocupada em explicar os condicionantes da participação em contextos convencionais (formas de participaçao ligadas ao momento eleitoral) ou em formas não convencionais (movimentos de protesto, por ex.). Dentre uma multiplicidade de fatores que são levantados como determinantes para a participação, chama a atenção o fator relativo ao status socioeconômico dos indivíduos. A relação positiva entre maior renda e grau de escolaridade com maior participação política tem sido afirmada e reafirmada nas pesquisas sobre o tema (Milbrath, 1965). De maneira geral, entende-se que os indivíduos com status mais elevado apresentam maior interesse pela política, maiores informações, recursos e habilidades, além de maior consciência acerca da importância da política, maior senso de dever e de eficácia política (Verba e Nie, 1972).

É certo que muitas outras variáveis estão em jogo quando se tem em mente um fenômeno tão complexo como o da participação. Questões relativas à identidade (Pizzorno, 1966), ao papel das elites políticas (Huntington e Nelson, 1977), à escolha racional dos indivíduos (Olson, 1999), aos contextos e às estruturas de oportunidades políticas (Tarrow, 2009) vêm ampliando e complexificando as bases explicativas desse fenômeno. No entanto, os modelos disponíveis têm se reportado, em boa medida, a um tipo de participação política que tem sido enquadrado, na literatura, como participação convencional, ou seja, vinculado às atividades eleitorais. Outras formas “não convencionais” de participação, como os protestos e a participação institucional, vêm mais recentemente recebendo crescente atenção no debate teórico sobre a participação política.

No caso dos protestos, várias pesquisas têm revelado que eles vêm sendo utilizados frequentemente por diferentes públicos como ferramenta política para influenciar decisões governamentais (Norris, 2007; Meyer e Tarrow, 1998; McAdam, Tarrow e Tilly, 2001). A sua própria definição como participação “não convencional” passou a ser criticada em razão da frequente recorrência em diferentes regiões do planeta (Dalton, Sickle e Weldon, 2009). Nesta perspectiva, a crescente relevância dessa modalidade de atuação política tem inspirado a formulação de algumas teorias e hipóteses sobre os fatores que favoreceriam o envolvimento dos indivíduos em protestos. Com algum esforço de síntese, poderíamos dividir essas iniciativas em dois grupos fundamentais: 1) abordagens de nível macro que enfatizam variáveis estruturais nacionais; e 2) abordagens de nível micro que privilegiam variáveis e atributos individuais (Ribeiro e Borba, 2012). Entre as abordagens macro, temos as teorias da mobilização de recursos, do processo político e da modernização. Cada uma delas elenca alguns elementos do contexto que podem influenciar no envolvimento da cidadania nas formas de protesto. Destaca-se, em especial, a configuração das instituições políticas e os fatores econômicos de longa e curta duração (como os contextos de estabilidade e/ou crise econômica). Para as teorias de nível micro, as tradicionais variáveis relacionadas aos recursos (Verba, Scholozman e Brady, 1995) têm sido as mais mobilizadas pela literatura.

Um importante esforço de conexão entre as abordagens macro e micro foi recentemente realizado por Dalton, Sickle e Weldon (2009). Utilizando uma ampla base de dados produzida pelo projeto World Values Survey (Pesquisa Mundial de Valores) esses investigadores procuraram identificar as conexões entre fatores estruturais e individuais, testando comparativamente os rendimentos explicativos de algumas das abordagens listadas acima. As descobertas deste estudo são bastante interessantes, pois questionam algumas hipóteses aparentemente plausíveis. Primeiramente, os resultados obtidos não confirmam os efeitos do sentimento de privação e insatisfação individual sobre o comportamento de protesto. Ainda que os indivíduos envolvidos em atividades contestatórias sejam motivados por alguns sentimentos desta ordem, esse não parece ser um fator suficiente ou determinante na explicação do seu comportamento. Confirmando a pertinência das abordagens que enfatizam os recursos individuais, os autores verificaram que os cidadãos que protestam são os mais escolarizados e os mais envolvidos em associações, o que “[…] contradict the common claims that protest are primarily the tool of the disadvantaged and those without substancial political resources” (Ibid., p. 71). Além disso, suas análises revelaram o forte impacto de variáveis culturais sobre essas formas de engajamento. Indivíduos identificados como pós-materialistas e os que manifestam orientações próprias de um posicionamento ideológico de esquerda tendem a se envolver mais em modalidades contestatórias. A confirmação dessas hipóteses relacionadas ao nível micro ou individual, entretanto, não conduz à desconsideração da dimensão estrutural do fenômeno, pois os autores também identificaram que os efeitos dos recursos e valores são diferenciados em distintos contextos políticos e econômicos. Cidadãos de países democráticos com níveis elevados de desenvolvimento econômico têm maior probabilidade de se envolverem em ações de protesto do que os cidadãos de nações com regimes mais fechados e com níveis inferiores de desenvolvimento material, ainda que esses dois grupos de pessoas possuam os mesmos recursos. Ou seja, “economic development and open democratic institutions facilitate the translation of individual resources into political action.” (Ibid., 72).

No caso da participação política institucional – em especial os orçamentos participativos (OPs) – muitas pesquisas vêm procurando avaliar diferentes dimensões desse fenômeno, como a capacidade de democratização das decisões públicas (Fedozzi, 1996; Avritzer, 2003; Lüchmann, 2002; Borba e Lüchmann, 2007); a eficiência e a legitimidade na gestão das políticas públicas, alcançadas através da participação (Allegretti e Herzberg, 2004); seus efeitos na capacidade de promoção de aprendizados políticos (Lüchmann, 2012; Fedozzi, 2009); os impactos redistributivos dos OPs (Marquetti, Campos e Pires, 2010); os determinantes das fragilidades, ou descontinuidades do OP (Goldfrank, 2006); e os tipos de OPs no mundo (Sintomer et. al, 2012); entre outros.

Nesse balanço da literatura, pode-se perceber que, apesar da grande contribuição empírica que esses estudos trazem, evoluindo para análises comparativas, a maioria deles carece de um sólido referencial analítico que busque explicar os determinantes da participação dos indivíduos nessas novas modalidades de participação política, e que também parecem não se enquadrar na classificação que divide as modalidades em “convencional” e em “não convencional”, sugerindo a pertinência dos estudos que atualizem o debate, em diálogo com as perspectivas que apontam para a multidimensionalidade do fenômeno da participação.

Considerando o fato de que recentemente, tanto Portugal quanto Brasil foram sacudidos por movimentos de protesto, por um lado, e vêm desenvolvendo uma série de experiências de OPs, por outro, achamos importante o desenvolvimento de esforços analíticos destinados a estudar o tema, dialogando com as teorias da participação política.

Nesta perspectiva, o presente projeto visa mapear e analisar as duas modalidades de participação política: protestos e participação nos OPs no Brasil e em Portugal, procurando responder às seguintes perguntas:

– Qual o perfil dos participantes em protestos e em OPs nos dois países?

– Em que contextos os protestos e OPs ocorrem?

– Quais os principais repertórios dos protestos?

– É possível identificar uma tipologia de OPs, quais as similaridades e diferenças entre      eles?

– Há alguma correlação entre essas duas modalidades de participação e a participação eleitoral?

– Quem são os atores mobilizadores dos protestos nestes dois países?

– Quais os determinantes da participação nessas duas modalidades?

– Qual é a relação entre o ativismo político e a participação institucional e/ou em protestos?